
Meses depois, Alfredinho, como era conhecido, foi mobilizado pelo Exército francês para lutar contra o avanço das tropas de Hitler. Aprisionado, passou a guerra num campo de concentração na Áustria, ao lado de prisioneiros soviéticos. Aprendeu russo para pregar o Evangelho a seus companheiros de infortúnio. Em 1945, logrou fugir do campo, onde morreram cerca de 40 mil pessoas. Estranhou a indiferença dos soldados nazistas que cruzavam com ele, um notório evadido, com uniforme azul e cabeça raspada. Naquele dia, a guerra terminara.
Alfredinho tomou três decisões: tornar-se padre, trabalhar com os mais pobres entre os pobres e jamais vestir outra roupa que não reproduzisse o modelo do uniforme do campo, em memória de seus companheiros mortos.
Ingressou na congregação dos Filhos da Caridade e, a convite de dom Antônio Fragoso, em 1968 veio para a Diocese de Crateús (CE). Perguntou ao bispo qual era a paróquia mais miserável da diocese. Dom Fragoso apontou Tauá, região de seca e flagelo. Alfredinho instalou-se na capela local. Desprovida de casa paroquial, ele dormia no colchão estendido junto ao altar e cozinhava num fogareiro.
Certa noite, foi chamado para atender uma prostituta que, cancerosa, agonizava em seu barraco de taipa, na zona boêmia. Antonieta queria confessar-se. Padre Alfredinho disse a ela: "Somos nós que devemos pedir perdão a você. Perdão pelos pecados de uma sociedade que não Ihe ofereceu outra alternativa de vida. Como Jesus prometeu, Antonieta, você nos precederá no Reino de Deus. Interceda por nós."
Após receber a absolvição e a unção dos enfermos, a mulher faleceu. Não havia dinheiro para o caixão. As prostitutas enrolaram a companheira num lençol e arrancaram a porta de madeira do barraco para levar o corpo a vala comum do cemitério. Ao retornar para colocar a porta no lugar, Alfredinho teve uma inspiração. Durante anos, o vigário de Tauá habitou aquele casebre em plena zona boêmia da cidade.
Num tempo de seca, os flagelados invadiam as cidades do Ceará. Temerosos, muitos fechavam as portas. Alfredinho criou a campanha da Porta Aberta ao Faminto (PAF), cartaz que cerca de 2 mil fami1ias ostentaram em suas casas, acolhendo as vítimas do descaso do poder público.
Fomos amigos e bebi de sua espiritualidade. Barbado, vestido com a roupa azul que lembrava um macacão, sandálias nos pés e mochila nas costas, o aspecto de Alfredinho não diferia do de um mendigo. Convidado a pregar o retiro dos franciscanos, em Campina Grande, chegou de madrugada e dormiu na escada da igreja do convento. Ao acordar, catou as moedas que encontrou em volta e bateu a porta. "Quero falar com o superior", disse ao porteiro. "O superior não pode atender. Está em retiro." Alfredinho tentou esclarecer: "Sim, eu sei, pois vim pregar o retiro." O porteiro já ia expulsá-lo quando Alfredinho foi reconhecido por um frade que passava.
Testemunhei fato idêntico em Vitória, nos anos 70. A cozinheira interrompeu meu jantar com dom João Batista da Motta Albuquerque para comunicar: "Um mendigo insiste em falar com o senhor." O arcebispo reagiu: "Diga a ele que espere, minha filha. Vou atende-lo após o jantar." Era o padre Alfredinho, que viera pregar o retiro do clero local.
Em 1988, Alfredinho mudou-se para a Favela Lamartine, em Santo André (SP). Passou a viver entre o povo da rua e a dedicar-se a confraria que fundou, a Irmandade do Servo Sofredor (Isso), hoje congregando pessoas consagradas aos mais pobres em dez Estados do Brasil e vários países. Sua trajetória espiritual entre os excluídos está narrada em seus livros, muitos traduzidos no exterior: A sombra do Nabucodonosor, A Ovelha de Urias, A Burrinha de Balaão, A Espada de Gedeão e O Cobrador.
No domingo, 13 de agosto, Alfredinho transvivenciou, acolhido por Aquele que era o seu caso de Amor. Deixou como herança o testemunho de que uma Igreja afastada do pobre é uma Igreja de costas para Jesus.
Frei Betto, escritor, é autor do romance sobre exclusão social Hotel Brasil (Ática), entre outros livros.
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